3 de nov. de 2010

Crónica de outros quotidianos


A propósito da crónica e do que ela pode ter como tema(s), a Hermínia partilhou conosco um trecho do livro “Pequenas Memórias” de José Saramago. Nele o autor conta como, em criança, passava longas horas na oficina do sapateiro Francisco Carreira na aldeia de Azinhaga. Na oficina do sapateiro convergiam, em momentos diferentes, os diferentes estratos sociais que ali partilhavam a sua leitura de acontecimentos e ideias, assim compondo a crónica do quotidiano.
Na verdade, na memória das pequenas e grandes localidades, o barbeiro e o sapateiro eram ponto de encontro e de troca de novas, ditos, contos e mexericos dos pequenos e grandes acontecimentos do dia-a-dia local, nacional e internacional.
Viajemos, então, aos anos trinta e sentemo-nos num cantinho duma oficina de sapateiro em Lagoa, Algarve. Observemos quem chega. Um cliente ou outro com velhos pares de sapatos para pôr meias solas, gáspeas, capas nos tacões…
E aqueles senhores? Não parecem vir trazer nem buscar calçado! Pelo ar e pelo trajo parecem pessoas bem colocadas na hierarquia local.
De facto são quatro amigos, republicanos convictos que aqui vêm trocar dois dedos de conversa, discutir políticas, preocupações e desejos, falar um pouco disto e daquilo e, porque não, deste e daquele. São eles José de Carvalho e seu irmão Francisco, o farmacêutico e o senhor Rocha, todos eles, pessoas consideradas na vila.
Anos 30, século XX

José de Carvalho, republicano, crítico e solteiro militante e lagoense, homem discreto, estatura mediana, barba grisalha à Guerra Junqueiro, com uns laivos de alourado no lábio superior pelo facto de ser fumador, vivia com uma irmã, de nome Maria do Carmo.
Quando lhe perguntavam porque não havia casado, respondia: “Tenho feito muitos disparates, mas esse não!”
Tinha estado em Moçambique, onde exerceu altos cargos públicos, mas resolveu pedir a demissão e regressar à Metrópole, dizia, para todos os dias ser procurado por pessoas necessitadas de emprego, e ele não podia ser útil, o que o desgostava.
Em Lagoa foi administrador do concelho, também se demitiu.
Apareciam pessoas apresentando queixas de agressões. Acareava queixoso e acusado e verificava que se tratava de zaragata na taberna, dava-lhes uma lição dizendo-lhes: “Ao sábado, ao receberem a féria, vão direitinho às vossas casas; não passem pela taberna! As vossas mulheres necessitam desse dinheiro para alimentar a família. Deixem a taberna!”
Dirigindo-se directamente ao agressor, dizia-lhe: “Se voltas cá por casos destes, meto-te na prisão! Rasgaste a roupa ao teu amigo, e agora sabes o que vou fazer? Vou pagar do meu bolso o valor da mesma, para não te obrigar a fazê-lo, como seria normal, porque não quero castigar a tua mulher e filhos por disparates de que só tu és responsável!” Perguntava ao ofendido o valor da roupa estragada, pagava e terminava dizendo: “Ao sábado não passem pela taberna!” Dizia: “Sabe quanto isto me custou? Muito dinheiro!”
Era dono duma propriedade agrícola que, devido à sua retirada para África, ficou sob orientação de seu irmão Francisco.
Certo dia, o caseiro procurou-o, lamentando que o Senhor Francisquinho o tinha despedido e não tinha para onde ir com a família. Disse ele: “Sabes, tu fazes o trabalho de tarde, fazes as colheitas de tarde, e tudo está atrasado em relação ao que os vizinhos fazem. Faz tudo pela manhã! Não vás tantas vezes à taberna! Faz como te digo e eu vou pedir ao Francisquinho para não te despedir!”
Quando o homem se retirou, disse: “É um pobre. Embriaga-se, descura os trabalhos, mas tem mulher e filhos; não o despeço.” Dizia ele: “Sabe o prejuízo numa vinha no fim da época? São arrobas de uvas consumidas por uma família, o casal, mais quatro ou cinco filhos.”
A pessoa que ouvia respondeu assim: - E se eles não comerem as suas uvas, e forem comer as dos vizinhos?
- Com os diabos – respondeu – punha-os na rua!
- Guardam a propriedade, têm – diz ele - direito a comer tudo do que ela produzir. Se não comem do melhor, são parvos!”
Certo dia, dirigindo-se a um amigo, espavorido, diz: “Sabe, encontrei ali o João Rodrigues, e eu julgava-o uma pessoa inteligente. O homem é um bruto. Diz esperar a vinda de D. Sebastião, montando um cavalo branco numa manhã de nevoeiro.”
Ao verificar que uma jovem aparentava estar tuberculosa, mandou uma pessoa a sua casa para lhe entregar alguns produtos alimentares (não referindo o seu nome para não ser mal compreendido).
Numa sessão de propaganda da 1ª República, disse assim: “Sou republicano desde o berço e serei até ao sepulcro. Depois de descer aos infernos, farei dos diabos todos republicanos.
Dizia: “Há muita miséria! Calculem que nos pesqueiros deixo muitas beatas e, quando volto, já têm levado todas!”
Era muito recolhido. Dizia sair de casa para visitar três amigos. “Mas se souber que algum deles se porta mal, deixo de sair.” Quando, numa dessas visitas, entrou o cunhado do dono da casa e o cumprimentou, ele deu-lhe dois dedos e depois comentou: “Aquele tipo faliu e ficou com um armazém recheado. Um ladrão! Da próxima dou-lhe o pé!”
Pedia para o avisarem da saída de alguma procissão para ele se meter em casa, não fosse encontrar isso.
No testamento deixou dito que queria um funeral civil e modesto. Se ocorresse em Lisboa, iria na carreta do Registo Civil, caso em Lagoa, na da Misericórdia, puxada por animais de duas pernas.
Um seu irmão, de apelido Azevedo Lopo, ao ver a urna sair de casa coberta pela bandeira nacional, recusou-se a acompanhar o féretro. Era monárquico, tinha feito parte como oficial das tropas de Paiva Couceiro, aquando da incursão pelo Norte a fim de reimplantar a monarquia.
Rogério, 07/10/2010

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