6 de abr. de 2011

A nuvem cor-de-rosa



Enquanto somos novos, isto é, até cerca dos trinta anos de idade, o metabolismo do nosso corpo permite-nos dormir toda a noite sem interrupções, dando-nos ao acordar a impressão de que aquelas horas de descanso não passaram por nós, Isto, é claro, se não for o caso de estarmos excitados com algum assunto pessoal, ou se estivermos doentes.
Mais tarde, e à medida que a idade avança são frequentes as idas à casa de banho a meio da noite, por um lado é o sono que é mais leve, por outro as preocupações do dia-a-dia vão connosco para a cama e, de certa forma, atormentam-nos o descanso, e ainda porque a elasticidade do nosso corpo não nos permite excessos de volume por muito tempo.
É essa a experiência de vida de todos nós, e portanto é essa a minha experiência, pelo que, por hábito e automatismo, é normal que a meio da noite eu vá descarregar os líquidos em excesso no lugar a tal destinado, porém, e para não acordar a parceira que partilha comigo a outra metade da cama, tenho o bom senso de fazer todo percurso de luz apagada, de forma que vou e volto às escuras e normalmente meio a dormir. Nestas sucessivas surtidas nocturnas nunca nada de estranho me aconteceu, o que é normal, pois conheço perfeitamente a geogra­fia da casa, sei o lugar exacto dos móveis e adereços que a decoram, e, nestas condições, é com facilidade que me desloco pela casa às escuras, proeza que penso, toda a gente é capaz de cometer.
No entanto, e para que as excepções sirvam para confirmar a regra, aconteceu uma noite o anormal, o diferente, o desconhecido. Aconteceu há alguns anos, não o posso precisar, porque interessa, isso sim relatar o sucedido para se ter ideia de quanto a pessoa pode ficar fora de si perante situações aparentemente inexplicáveis.
Pois bem numa noite em que como de costume saí da cama para aliviar os líquidos precipitados há horas, ao abrir a porta do quarto na mais completa escuridão, senti-me de imediato possuído de uma sensação de desconhecido, e fiquei francamente bloqueado apesar de ainda mal acordado.
Ali mesmo à porta do quarto, na minha frente, e à altura do meu peito estava suspensa no ar do pátio de distribuição das divisões, uma nuvem, ou aquilo que o aparentava ser, de uma ligeira tonalidade rosa. Fiquei mirando aquilo, mal acreditando no que os meus olhos míopes tinham pela frente.
Ora sendo eu uma pessoa pouco dada ao sobrenatural e ao metafísico, não ignorando eu, no entanto, que muita gente acredita em coisas do além, e que se diz capaz de visões fan­tásticas, procurei com a rapidez que os resquícios do sono me permitiam, uma explicação objectiva para tão insólita aparição; contudo, a nuvem ligeiramente luminosa permanecia está­tica na minha frente.
É claro que o meu raciocínio cavalgava veloz na procura de solução para o problema, não esquecendo que uma das incógnitas do problema residia na minha já aludida dificuldade visual, e assim começava a pôr em dúvida a natureza do estranho objecto em levitação. Então lembrei-me de que um dos adereços que fazia parte da decoração daquela saleta de distribui­ção era uma jarra com um arranjo composto por plumas, o qual ficava entre as portas do quar­to e casa de banho. Era então isso mesmo o jarro com as plumas, porém a irradiação luminosa que o tornava visível de noite passou a ser o mistério seguinte, pois que nunca antes tinha acontecido.
Então, mais seguro de estar próximo de desvendar completamente o mistério, decidi avançar, passando ao lado das plumas luminosas, e, olhando-as de frente, reparei então que o interruptor do radiador da casa de banho tinha acesa a luzinha alaranjada que indicava estar ligado; assim, esse débil feixe de luz incidia no emaranhado das fibras das plumas que estavam muito próximo e provocava, por difusão dessa luz, a impressão de nuvem luminosa.
Entrei na casa de banho, estava calor! Pois não! O radiador de parede estava aceso! Praguejei em honra de quem o tinha deixado ligado. Sentei-me na sanita e descarreguei a adrenalina. 
Carlos, Março 2011 

A menina Licas

A propósito de um texto de António Lobo Antunes dado a ler numa das aulas anteriores, que abordava a inevitável relação entre homem e mulher, com todo o interminável universo de questões que o recheia, veio-me á memória um episódio passado comigo que foi revelador de uma espécie de estado de encantamento, que, naquela minha idade, seria como uma paixão ingénua que aparece e desaparece como uma doença de infância.
Na meninice de todos acontece, de certeza, ainda que de formas diversas, sentirmos que algo de extraordinário e belo nos prende sem que nos detenhamos na análise da sua origem, pois não temos treino de vida para tal, e, assim, dessa inexperiência, resultarem muitas vezes situações de inevitável impulso, em que o jovem não nota que se encontra em delírio existencial.
Pois bem, na altura eu teria os meus três ou quatro anos de idade, e passava alguns dias em casa do meu avô paterno, quase sempre acompanhado pela minha tia, a quem eu tratava por "TITIA".
Como distracção naquela casa que não era a minha, eu passava o tempo no quintal brincando com o que encontrava de útil á brincadeira, ouvia contos e conversava com a minha tia, ou então punha-me á janela observando a rua e tudo o que nela se passava.
Nesse tempo, tal como ainda hoje aquela rua, por ser pouco central, era pouco movimentada, no entanto, sempre dava para ver alguns vizinhos nas suas saídas, o carteiro que entregava a correspondência em algumas casas, a carroça do lixo que se anunciava pelo toque da sineta para a recolha dos despejos, esporadicamente um mendigo que ia pedindo de porta em porta, ou então, coisa rara, um automóvel, que era motivo de acenos e festa por se tratar de um objecto admirável e por levar dentro pessoas.
Vista daquela janela a rua para o lado direito era a subir até a padaria do Sr. Rocha, e, é claro, para o lado esquerdo era a descer, até á Estrada Velha, porém, meninos da minha idade por ali não havia, todos os que lá moravam eram já rapazes, e também raparigas, quero dizer pelo menos uma rapariga, pois que se outras havia eu não me lembro. Essa que me recordo era a menina Licas!!
Pois bem, se as distracções à vista naquela rua eram poucas, eu comecei então a fixar a minha atenção numa casa de construção moderna e janelas largas que se situava quase em frente á janela das minhas observações e que era a casa da menina Licas, disso eu não tinha duvidas, pois, tal como eu, também a menina Licas tinha o habito de se pôr á janela a observar a rua.
Então dediquei-me à distracção de observá-la com atenção, pois que a esplêndida cabeleira loura, as formas virtuosas do seu porte e outros secretos atributos que eu lhe adivinhava começaram a exercer em mim uma inexplicável atracção. Para além disso outra particularidade nela despertava o meu interesse, que era a forma como ela se punha à janela, provavelmente apoiada em algo que estava do lado de dentro, de forma que ficava bastante debruçada sobre o parapeito da janela, e portanto bem à minha vista.
Assim, as minhas idas para a janela eram coroadas de um secreto êxito sempre que eu tinha a menina Licas bem enquadrada na minha objectiva, no entanto, era mais o tempo que eu esperava para vê-la do que aquele em que a tinha à vista. A rapariga, porém, nem reparava no fedelho que, da janela em frente, a observava atentamente, pois que estaria ela talvez esperando a passagem de alguém que de facto lhe interessaria ver na rua.
E deste jeito as coisas continuaram, eu observando a menina Licas, e ela, ignorando a minha presença, observava a rua olhando da sua janela. No meu íntimo comecei a sentir-me injustiçado, porém, e já que nada de reconfortante me acontecia, um dia voltei-me para a minha tia com ar triunfante comentei-lhe: OH TITIA, A MENINA LICAS É TÃO SIMPÁQUITA!!
Carlos, Março 2011

Depois dum breve interregno...


Este blog, parece ter-se deixado aturdir com o despertar da primavera e mergulhado no sonho de tanto voo, tanto salpico de cor nos campos, tanta luz. Na verdade, as nossas sessões semanais tiveram algumas interrupções e as participações nem sempre têm sido tão regulares.
Mas a verve criativa continua a fervilhar, e, no nosso último encontro, fomos presenteados com dois textos saborosos.

Ei-los! Deliciem-se!