23 de nov. de 2010

Crónica de outros quotidianos


Anos 30, século XX

Mais uma história dum Lagoense de um tempo em que estas praias ainda eram quase exclusivamente dos Algarvios.

O homem que era dono duma praia

Chamava-se Francisco Carvalho Azevedo e Silva e residia em Lagoa, tendo por companheira uma governanta. Estava separado de sua esposa.

Tinha uma propriedade murada no sítio de Alfanzina que confinava com a falésia, onde existe uma enseada com areia.

Resolveu abrir um túnel escavando a rocha e, por meio duma escadaria na mesma talhada atingiu a pequena praia.

Já na praia, aplanou uma rocha situada no areal e assim criou uma pista de dança.

Também tinha um baloiço e um burro de cambalhotas.

Nesta praia dançava-se ao som de grafonola.

Escavou a falésia fronteira à escadaria e aí criou uma sala onde tinha uma mesa com gavetas com segredo para abrir.

Prolongando o rasgo na falésia, criou um pesqueiro (pesca à linha).

No patamar ao fundo, do lado direito, tinha uma pequena lancha suportada por barrotes em parte metidos na rocha.

Por baixo tinha uma manjedoura encimada com o seguinte dístico: “Comerá disto quem disser que desta praia não gosta.”

Quem quisesse ir à praia tinha que ir pedir a chave ao quinteiro e voltar a entregar-lha de volta.

Assim nasceu a Praia do Carvalho.

Rogério, 17-11-2010

Se a ordem é inventar...

Como de costume a Natércia respondeu ao desafio das "Escrevências desiventosas" recriando a nossa língua em poesia.
Eis o poema:

I

Se a ordem é inventosa

Vamos lá a inventar

Uma palavra engenhosa

Que não custe decifrar

II

Mia Couto, que escritor

Ele devia ser mágico

Na poesia põe “Amor”

Na dor ele põe o “Trágico”!

III

Fala da imagináutica

Que palavra foi buscar

É um dom da estreláutica

Também estou a inventar!

IV

Que estranha constelação

Onde descobre a palavra

Inventa com o coração

Nem o dicionário se salva!

V

Mia Couto, “cronicando”

Nesta eu achei beleza

Mesmo que seja inventando

Eu gostei da inventeza

VI

Fui ao saco da gramática

Que descoberta que eu fiz

Em vez de “às duas por três”

Diz ele, duas por triz!

VII

O Mia foi misturando

Dizendo talvez sem nexo

Até dizem que falando

A palavra não tem sexo!

VIII

Se as palavras inventar

Sobem-me as cores ao rosto

Se não as deixam passar

E ficam presas no posto?

IX

Não sei que mais inventar

Entre escrevente e falantes

Se o Mia não se zangar

Fica tudo como dantes!

X

Gostei da do “detergente”

De lavar as impurezas

Do rio que corre descendo

Levando tantas tristezas!

XI

Escrevências Desinventosas

Agora para terminar

Sem palavras inventosas

Vou Mia Couto saudar!


15 de nov. de 2010

Inventores de palavras


A propósito do desafio de participar na recriação da língua imaginando novas palavras, fui repesquei dos meus velhos cadernos dos tempos de estudante estes dois poemas de Alexandre O'Neill que, já então, ignorava a polícia da língua (e dos costumes!) e nos brindava com estas lufadas de ar fresco:


AMIGOS PENSADOS : VATE 65

Crocodiletante
lacricrimejante
ou vociferante
ao cri-cri da crítica.

Abaixo a política!

Antes a poesia,

que é coisa mais séria.

Seria?


BILHETE-POSTAL A ALEXANDRE PINHEIRO TORRES

Absinto-me cansado
na outonalma.
De absinto, no outono,
encharco a alma...

Muito deve a literatura
ao absinto.
Em qualidade, muito mais
que ao tinto...

Ó Alexandre, manda-me absinto
na volta do correio,
que eu já sinto, com tanto tinto,
estancar-se-me o veio...

14 de nov. de 2010

Desalisando a linguagem

Odete Semedo, escritora guineense, diz que “A língua nasceu solta e desenvolta. Nasceu virada para fora de si.(…).
A língua, na sua fantasia, tem vestidos: vestidos requintados com enfeites de emoção, roupa de mendigo e com remendos (…), vestido com bordados e afrontas que para muitos são heranças que os séculos lhe foram juntando num pé-de-meia. E com todos esses vestidos chega a bifurcar-se em língua do coração, língua do sentir, da alma e língua de contacto com o resto do mundo. (…) Têm elas o seu estilo de cooperação: a língua de viagens, a de contacto, acaba pedindo emprestadas as roupas de emoção da língua do sentimento (…). Esta, por sua vez vai deixando que a língua do sentimento faça uso de suas letras”.

Por isso, nas nossas sessões de leitura, escrita e (muita) conversa a propósito do que lemos, nos é tão fácil deixar que, como diz Mia Couto, a língua se torne carícia para fruir “o simples gosto da palavra” e da linguagem que o escritor persiste em “desalisar”, “colocando nela as quantas dimensões da Vida.

Desalisando a linguagem lemos com um sorriso gostoso a crónica “Escrevências desinventosas” de Mia Couto

E, pois que não somos “polícias da língua” e a cada dia nos deixamos encher do encantamento e a poder recriar, o desafio surgiu naturalmente: trazer para a sessão seguinte algumas novas palavras tentando integrá-las em pequenos textos ou, pelo menos, pequenas frases.

Fonte das citações: Instituto Internacional da Língua Portuguesa

4 de nov. de 2010

E a língua de Camões?


Da observação do quotidiano nascem, também em verso, comentários bem humorados .


Ouvi hoje uma palestra

Que me deixou abismada

Eram jovens à conversa

Eu não entendi nada


Numa linguagem sem nexo

“Quero que tudo se lixe”

Depois falaram de sexo

E que era “bué da fixe”!


Continuei a ouvir

Sem saber o que pensar

Um disse: “eu quero é curtir”

E outro “vou-me bazar”!


Que estranho linguarejar

Eu escutava dos mancebos

Não estariam a estuda?

Não saberiam os verbos?


Terá uma certa dureza

Este meu analisar?

E a língua portuguesa

Quem a poderá salvar?


Já fomos grandes na história

Orgulhosos dos brasões

Onde está a nossa glória

E a língua de Camões?


Natércia, 27/10/2010