6 de abr. de 2011

A menina Licas

A propósito de um texto de António Lobo Antunes dado a ler numa das aulas anteriores, que abordava a inevitável relação entre homem e mulher, com todo o interminável universo de questões que o recheia, veio-me á memória um episódio passado comigo que foi revelador de uma espécie de estado de encantamento, que, naquela minha idade, seria como uma paixão ingénua que aparece e desaparece como uma doença de infância.
Na meninice de todos acontece, de certeza, ainda que de formas diversas, sentirmos que algo de extraordinário e belo nos prende sem que nos detenhamos na análise da sua origem, pois não temos treino de vida para tal, e, assim, dessa inexperiência, resultarem muitas vezes situações de inevitável impulso, em que o jovem não nota que se encontra em delírio existencial.
Pois bem, na altura eu teria os meus três ou quatro anos de idade, e passava alguns dias em casa do meu avô paterno, quase sempre acompanhado pela minha tia, a quem eu tratava por "TITIA".
Como distracção naquela casa que não era a minha, eu passava o tempo no quintal brincando com o que encontrava de útil á brincadeira, ouvia contos e conversava com a minha tia, ou então punha-me á janela observando a rua e tudo o que nela se passava.
Nesse tempo, tal como ainda hoje aquela rua, por ser pouco central, era pouco movimentada, no entanto, sempre dava para ver alguns vizinhos nas suas saídas, o carteiro que entregava a correspondência em algumas casas, a carroça do lixo que se anunciava pelo toque da sineta para a recolha dos despejos, esporadicamente um mendigo que ia pedindo de porta em porta, ou então, coisa rara, um automóvel, que era motivo de acenos e festa por se tratar de um objecto admirável e por levar dentro pessoas.
Vista daquela janela a rua para o lado direito era a subir até a padaria do Sr. Rocha, e, é claro, para o lado esquerdo era a descer, até á Estrada Velha, porém, meninos da minha idade por ali não havia, todos os que lá moravam eram já rapazes, e também raparigas, quero dizer pelo menos uma rapariga, pois que se outras havia eu não me lembro. Essa que me recordo era a menina Licas!!
Pois bem, se as distracções à vista naquela rua eram poucas, eu comecei então a fixar a minha atenção numa casa de construção moderna e janelas largas que se situava quase em frente á janela das minhas observações e que era a casa da menina Licas, disso eu não tinha duvidas, pois, tal como eu, também a menina Licas tinha o habito de se pôr á janela a observar a rua.
Então dediquei-me à distracção de observá-la com atenção, pois que a esplêndida cabeleira loura, as formas virtuosas do seu porte e outros secretos atributos que eu lhe adivinhava começaram a exercer em mim uma inexplicável atracção. Para além disso outra particularidade nela despertava o meu interesse, que era a forma como ela se punha à janela, provavelmente apoiada em algo que estava do lado de dentro, de forma que ficava bastante debruçada sobre o parapeito da janela, e portanto bem à minha vista.
Assim, as minhas idas para a janela eram coroadas de um secreto êxito sempre que eu tinha a menina Licas bem enquadrada na minha objectiva, no entanto, era mais o tempo que eu esperava para vê-la do que aquele em que a tinha à vista. A rapariga, porém, nem reparava no fedelho que, da janela em frente, a observava atentamente, pois que estaria ela talvez esperando a passagem de alguém que de facto lhe interessaria ver na rua.
E deste jeito as coisas continuaram, eu observando a menina Licas, e ela, ignorando a minha presença, observava a rua olhando da sua janela. No meu íntimo comecei a sentir-me injustiçado, porém, e já que nada de reconfortante me acontecia, um dia voltei-me para a minha tia com ar triunfante comentei-lhe: OH TITIA, A MENINA LICAS É TÃO SIMPÁQUITA!!
Carlos, Março 2011

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